CARLOS ZÍNGARO
CARLOS ZÍNGARO
Release From Tension CD audEo 0197
Carlos Zíngaro - violinos, guitarra portuguesa, voz, electrónica David d'A. Alves - voz e estória em «Current Directions» Todas as composições e arranjos da autoria de Carlos "Zíngaro" (SPA) Produção de Carlos "Z." com a colaboração e iniciativa de Rui Eduardo Paes Gravado entre setembro de 1996 e abril de 1997 no estúdio "ZNGR", Lisboa, por Carlos "Z." Colaboração técnica de Emídio Buchinho Desenho e design de Gonçalo Calheiros Produção gráfica da Alquimia da Cor Apoio técnico à edição pela Xinfrim Colaboração de Ilídio Moreira Dedicado por Carlos Zíngaro "aos meus pais (sem eles nada teria sido possível), à Ana e ao David (pela paciência) Edição em memória de António Pinto de Freixo (1917-1996) Reservados todos os direitos do produtor fonográfico e do proprietário da obra gravada, sendo proibida a duplicação e a utilização não autorizada desta obra, no todo ou em parte.
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Num dos mais belos contos de Tennessee Williams, «The Resemblance Between a Violin Case And a Coffin», aquele escritor norte-americano compara um estojo de violino com um pequeno caixão de criança ou de boneca. Referia-se ele, simbolicamente, à efemeridade da beleza, no caso a de um rapaz de 17 anos, Richard, que em menino o narrador via ensaiar escalas com a sua irmã mais velha, vindo mais tarde a saber da sua morte.
Não foi a primeira vez que um instrumento de música em particular teve um papel referencial na literatura e, designadamente, para representar um universo de perturbação. Arquiloco, poeta mal conhecido da Antiguidade Grega, terá sido o primeiro a entender a música como algo que tem origem na inquietude: «Desejo / Futuro / Inimigo, / Música: / Meu canto / E uma flauta / Juntos», escreveu. Já não é tão vulgar que a música se tenha a si própria como referente simbólico, mas tal vai acontecendo cada vez mais neste fim de século e milénio. Os caso de Jon Rose, com o violino, e Robert Dick, com a flauta - para me cingir apenas aos instrumentos já apontados - serão os mais óbvios, dada a saga familiar construída pelo primeiro destes músicos em torno, precisamente, daquele cordofone, e as propriedades «extensivas» (mágicas, como na ópera de Mozart?) que o segundo confere às suas flautas. É o que também se passa com Carlos Zíngaro: «Tenho um especial interesse pelos rituais das religiões e por certas deturpações ou desvios religiosos, como as demonologias, as ciências ocultas, as missas negras, mas também as santas milagreiras, as virgens que choram lágrimas de sangue. Montei ao longo dos anos uma biblioteca sobre esses temas, passando pelas aberrações sexuais, os fetichismos, o animalismo. Sinto muita curiosidade, igualmente, pelos ritos mágicos africanos e pela cultura aborígene australiana, talvez porque esta é a que mais se aproxima dos nossos primórdios. Estes elementos da ordem do místico e do perverso, desconcentram-me, mas não são mais do que uma de muitas formas de transcender o quotidiano. É também o que eu faço, com o violino.» Na verdade, por trás de tudo isto há uma só coisa: o medo da morte. Como afirma Daniel Spoerri, artista romeno ligado ao movimento Fluxus, «a cultura é uma obsessão com a morte, porque no fim todos sabemos que vamos morrer». Esse pânico, sublimamo-lo de alguma maneira. Passamos a vida a ignorar a realidade da morte, mas é ela que vamos construindo aos poucos, dia após dia, sem disso nos apercebermos. A cultura é esse movimento colectivo em torno da «dama de negro», como lhe chama Zíngaro. Com o seu refinado humor negro, Carlos Zíngaro glosa o tema da morte sempre que alude ao seu contrário, a vida. Esse é apenas um de vários paradoxos a que se tem dedicado toda a sua carreira, os quais, muito curiosamente, nunca chega a resolver, mantendo-os íntegros ou mesmo renovando-os... Não esqueçamos as palavras de Isaac Newton: «Não fui mais do que uma criança brincando pela orla da praia, deslumbrado com a descoberta eventual de alguma concha fora do vulgar ou de um bonito seixo bem polido, enquanto o grande oceano da verdade permanecia por descobrir à minha frente.» Desenvolveu, nesse âmbito, dois projectos paralelos, ainda sem concretização devido a problemas técnicos. Um relaciona-se com a bioquímica da digestão, o outro com a do «rigor mortis». Previu, em ambos os casos, o tratamento electrónico dos sons próprios de uma digestão e do processo orgânico interno que sucede à morte - sons esses captados por microfones de contacto. O espectáculo que concebeu com estes temas incluiria imagens vídeo, seriam lidos ou cantados textos retirados de livros médicos e científicos e aproveitar-se-iam os próprios gráficos dos grupos moleculares como elementos determinantes da notação musical. «Desconheço que som há no "rigor mortis", mas gostaria de descobrir. Talvez nada aconteça, mas o silêncio também é um som, é parte integrante da música. Os sons de uma digestão são mais fáceis de adivinhar. Se colocar um microfone próximo do esófago enquanto degluto e o ligar a uma unidade de síntese, fico com o som da deglutição, acrescido de algumas flatulências, e com o som transformado dessa mesma deglutição. A partir da manipulação de sons já existentes, passaria então à fabricação de outros», comenta o violinista. Mesmo quando não tem um mote do género, a música provém sempre de territórios obscuros da mente. O bucolismo é uma invenção, uma falsidade, bem como o mero «divértissement» musical. Disse Henri Laborit, respondendo, sem o saber, a uma interrogação de Samuel Beckett, «porquê esta ânsia de actividade?»: «Ao nível do consciente ou do inconsciente, há toda uma quantidade de obstáculos, de interdições, que se opõem a maior parte das vezes ao nosso prazer. Somos obrigados a reviver situações que sabemos de antemão dolorosas. Se não possuímos as capacidades ideológicas para nos alhearmos deste mundo, nada mais nos resta senão a fuga ou a luta. Mas, se não se pode fugir nem lutar, vivemos e conhecemos a "inibição da acção". Felizmente, o córtex do ser humano possui zonas associativas que lhe permitem conceber estruturas novas a partir de informações acumuladas pelo sistema nervoso. Por outras palavras, possui a capacidade de criar.» Seja como for, a música é efémera, tal como a beleza e a vida. A música é um objecto vago, diluído no espaço e no tempo e por isso de consumo imediato, rapidamente esgotável. É uma situação de momento, existe em «acto», mesmo que tenha sido minuciosamente composta ao longo dos anos. Ao contrário das artes plásticas, é confrontada na acção com o público. Para todos os efeitos, o seu único suporte é... o ar. Se não for gravada, desaparece. A tela pintada, a escultura, são o registo do momento da criação; a obra de arte é a representação de um acto, é o seu final, mas a finalidade da música não é ser gravada. A gravação é, assim, apenas uma cópia, um documento. Nunca disco algum poderá reproduzir as circunstâncias do acto musical. Algo de muito relevante, no entanto, realiza: a exorcização da morte. Os discos sobrevivem à passagem de músicas e músicos por este mundo. Contradizem a imediatez do som, retiram-no do tempo, congelam-no. Ainda que a música nos fale, inevitavelmente, da morte, a música ouvida em disco sobrevive-lhe, contranatura. É uma forma de vida virtual, «in vitro», e é isso que nos diz «Release From Tension» de Carlos Zíngaro, a primeira obra gótica da música improvisada depois de «Death Ambient» de Ikue Mori, Kato Hideki e Fred Frith. Rui Eduardo Paes jornalista e crítico musical |
Blitz
Carlos Zíngaro é um daqueles casos, infelizmente vulgares, de um músico reconhecido como um criador importante mas dono de um trabalho mal conhecido, para não dizer desconhecido. ... «Release From Tension» (que assinala a estreia editorial da audEo, sediada no Porto) é um trabalho em que o violinista se atira à tarefa de construir aquela que Rui Eduardo Paes, em texto que acompanha o CD, descreve como «a primeira obra gótica de música improvisada depois de "Death Ambient", de Ikue Mori, Kato Hideki e Fred Frith». Trata-se de um disco que, entre outros, tem o mérito de reunir motivos para agradar a duas audiências bem distintas: a um público especialista e conhecedor das novas correntes da música contemporânea (afinal, e no caso de Zíngaro, os «fregueses» do costume) mas também a alguns trânsfugas do rock interessados em fugir para as margens. Para esses, «Release From Tension» poderá representar um interessante contacto com uma música que combina o «relax» ambiental com a curiosidade estética das almas inquietas. (4/5) M.C. Jazz Magazine Servi pour planter un décor en trompe-l'oreille, tour à tour plaisant, sinistre, impénétrable, qui le cerne curieusement quand il s'élance et se diffuse... Rien ne manque ici d'intérêt. Alexandre Pierrepont Jornal de Letras Quem o ouvir tocar não se esquece. ... Ele é, naturalmente, Carlos Zíngaro e apresenta-se em novo disco. «Release From Tension» dá nome a este último trabalho de Zíngaro, estreia editorial da audEo, pautado pela metódica reconstrução de sons acústicos e electrónicos, ambiências e melopeias, a que se junta - surpresa! - uma guitarra portuguesa. Apesar da alusão simbólica, não se revelam quaisquer conotações tradicionalistas que um natural apelo poderia fazer esperar. Na imagética não recorre ao passado, como no improviso futurista não recusa a insinuação lírica. Bela combinação de opostos. ... Sem sobressaltos para a História, um velho conceito pode mesmo gerar novos ideais sonoros. Se assim não fosse, como explicar os universos paralelos que aqui habitam? ... Surpreende, ainda assim, o inesperado «castelo abandonado há cem anos...» do tema «Current Directions (...Quebrar O Desejo)». História contada na voz de uma criança, ironia contagiante em ritmos de rap e límpida alusão ao universo evocado por Tennessee Williams... ... A beleza efémera ou a translúcida inquietude de num violino com amplitude orquestral são ainda «Traços» ou temas inigualáveis de Zíngaro. Um bom lírico-digestivo. Teresa Manzoni Jornal de Notícias Um trabalho que abre uma nova via no percurso do violinista, uma vez que até à data, em situações a solo, nunca Zíngaro fez um uso tão apurado do sampler, dos sintetizadores ou do computador combinado com o violino acústico. ... Um álbum polifacetado, capaz de agradar aos cultores das novas tendências electrónicas, ambientalistas, fiéis da improvisação ou da mais contemporânea das músicas. ... "Release From Tension" flutua noutras águas, acabando por se tornar numa obra de referência. Cristiano Pereira Just Jazz Records For its editorial debut as a record producer audEo released Carlos Zíngaro Release From Tension which is a musical voyage through death and rigor mortis - an at times dreamy, eerie, powerfully dramatic, and also satirical experience. Margen El violinista portugués que oímos al lado de Joelle Leandre, Richard Teitelbaum y Daunik Lazro, el mismo que participó en el homenage a Buenaventura Durruti protagonizada en Barcelona por Agustí Fernández en octeto con algunos de los más prestigiosos improvisadores europeos, ha editado un nuevo CD, Release From Tension, en audEo. El trabajo está causando furor en el país vecino y en los medios europeos de la improvisación debido a la forma en que utiliza la electrónicaq y los ritmos de baile que en él surgen. "Habrá quien diga que este es un disco 'ceccesible' y que yo hice concesiones, pero es sencillamente el disco que me apeteció hacer", nos dice Zíngaro en el inicio de la entrevista que margen mantuvo con él a propósito de este álbum entre lo gótico y lo irónico, con momentos de grand tensión y otros caracterizados por el humor, mas bien negro, en la mayor parte de las ocasiones. Rui Eduardo Paes / Rogelio Pereira Minimal Carlos Zíngaro é considerado um dos mais importantes violinistas europeus, nas áreas da música improvisada e experimental. Editado pela audEo, o álbum "Release From Tension" será, no entanto, uma surpresa para quem o ouviu em "The Sea Between", "Écritures" ou "Solo - Monastère des Jéronimos". Gravado em estúdio, o seu novo disco revela uma nova faceta na carreira do músico. Isto, porque individualmente Zíngaro nunca aprofundara tanto, no passado, a integração do violino com a electrónica. ... Entre o estranho imediatismo de "Current Directions..." (o único tema com voz) e a complexidade electro-acústica de "Desespero Ritual", a obra desdobra-se numa dúzia de temas, permitindo-nos interpretar distintos momentos que se confundem na celebração da vida e da morte. Disco polifacetado, "Release From Tension" merece ser re-descoberto em cada nova audição. Luís Freixo Monitor Já não era sem tempo... "Release From Tension" marca a estreia editorial da portuense audEo que, aliás, não poderia ter sido mais bem conseguida. Jorge Saraiva Público Que mais podemos dizer da morte? ... Toda a obra de Zíngaro se resolve numa tensão tanática que ilustra, em forma de metáfora funerária, com o título de uma novela de Tennessee Williams: "A semelhança entre um estojo de violino e um caixão." ... Pode descortinar-se em "Release From Tension" uma idêntica operação de necrofagia, de dar vida (música, e não som, já que a morte, pelos vistos, pode fazer-se ouvir) ao inanimado, de ornamento de pulsões musicais contraditórias que Zíngaro sublima no atonalismo e no abstracionismo electrónico (ou ritual, como na "raga" de metal de "Open Series") em temas cujos títulos exprimem, por si sós, essa dialética de silêncio/ruído, caos/gramática, vida/morte, estruturação/decomposição: «Desespero Ritual», «Devil Angel», «Body Parts». ... A capa é o desenho cru de um corpo. Vivo? Morto? (7/10) Fernando Magalhães Ritual Carlos Zíngaro fez suster a respiração dos mais atentos e interessados nas novas linguagens musicais. "Release From Tension" (audEo, 1997), o seu mais recente álbum, foi um notável incómodo mesmo para certas consciências que se postulam como sensíveis à inovação e liberdade criativa. ... Gravado em estúdio, o seu novo disco revela uma nova (e talvez surpreendente) faceta... ... Entre o estranho mediatismo de "Current Directions..." (que abre com uma batida jungle, seguida pelo "sample" de uma voz infantil que "canta" uma estória de castelos e luzes vindas do espaço montada sobre as texturas do violino) e a complexidade de "Desespero Ritual" (onde os sons de natureza electro-acústica introduzem o compasso do metrónomo que, por sua vez, introduz o violino e as percussões), a obra desdobra-se numa dúzia de temas que celebram, em distintas etapas, a caminhada humana entre o início da vida e a morte. ... "Release From Tension" tem que ser apreciado sem pressas. E certo é que quantos mais anos passarem, melhor ainda nos saberá a sua audição!... Luís Freixo |