ERNESTO RODRIGUES
Violino, viola, eletrónica
José Ernesto Caldeira Rodrigues nasceu em Lisboa, Portugal, em 1959.
Iniciou os estudos musicais aos 7 anos, sob a orientação do maestro e compositor Wenceslau Pinto. Aos 14 anos passou a frequentar a Academia de Amadores de Música e, depois, o Conservatório Nacional, onde estuda violino, percussão e composição, nomeadamente os cursos de Violino, Formação Musical, História da Música e o de Acústica. Faz parte do Coro do Conservatório Nacional. Estuda Análise Musical e Técnicas de Composição com a professora Rita Maia e Silva. Estudou também com os compositores Paulo Brandão, Eurico Carrapatoso, Pedro Figueiredo e Pedro M. Rocha. Frequentou ainda o curso de teatro da Comuna e o curso da Escola de Música do Hot Clube de Portugal. Funda o grupo de jazz contemporâneo Metropolis. Profissionalmente toca violino e grava com Fausto, Jorge Palma e Flak, tendo colaborações ocasionais com outros músicos e grupos nacionais. No entanto, desenvolve especial interesse pela música erudita contemporânea, tanto escrita como improvisada, bem como pela música gráfica e pela indeterminação. A introdução da vertente eletrónica na sua música foi importante para apontar a abordagem do violino e, mais tarde, da viola de arco. No seu trabalho criativo, Ernesto Rodrigues subverte os conceitos fundamentais da música clássica académica, acrescentando-lhe a preparação e a microafinação, para potenciar efeitos sónicos e texturais nos instrumentos. Participa na fundação do coletivo multimédia Subversivo Grupo e coordena a área musical do magazine cultural Ver Artes, apresentado na RTP2 pelo arquiteto Manuel Graça Dias e pelo crítico Alexandre Melo. Musicalmente colaborou também com Bernardo Devlin e com os artistas plásticos Carlos Mota e Rogério Silva. Fez música para dança em trabalhos de Isabel Valverde, Ana Galan, Manuela Cipriano, Anna Pásztor, Mário Calixto e Ana Moura. Também para o vídeo-dança de Rui Simões "O Sonho do Guerreiro" e para as bandas sonoras dos filmes "Die Reise" e "Volumen", de António José Monsanto. Participou em seminários dirigidos por Emmanuel Nunes, Jorge Peixinho, Constança Capdeville, Karlheinz Stockhausen, Iannis Xenakis, pelo Workshop de Lyon, Olivier Johnson, Cecil Taylor, Takashi Kato, Andrea Centazzo, Kent Carter, Steve Potts e outros. Apresentou improvisações sobre poemas de Lawrence Ferlinghetti, na presença do escritor. Fundou o grupo Eurásia, vocacionado para a performance e para as poesias sonora, visual e concreta, bem como os grupos Metropolis, Fromage Digital, Orquestra Vermelha, Lautari Consort, IKB Ensemble, Suspensão e a Variable Geometry Orchestra, um grande ensemble de formação mutável, onde condução é por si operada equilibrando as massas sonoras que se movimentam o espaço acústico, definindo a composição em tempo real e revelando, dessa forma, a justaposição organizada de instrumentos específicos com grupos sonoros em movimento, nomeadamente a partir dos princípios e partituras dos compositores Gerhard Stäbler e Phill Niblock. Para dar maior visibilidade e criar memória perdurável desses e de outros trabalhos na sua área de ação, criou a Creative Sources Recordings, que conta já centenas de álbuns de música improvisada, experimental e eletroacústica, editados desde o início dos anos 2000. Como compositor e improvisador destacam-se as colaborações com Guilherme Rodrigues (seu filho), José Oliveira, Carlos Bechegas, Carlos Santos, Carlos Zíngaro, Sei Miguel, Manuel Mota, Gabriel Paiuk, Jean-Luc Guionnet, Taku Unami, Christine Sehnaoui Abdelnour, Michael Vorfeld, Wade Matthews, Ingar Zach, Michael Thieke, Keith Rowe, Axel Dörner, Tetuzi Akiyama, Pascal Battus, Alessandro Bosetti, Heddy Boubaker, Angharad Davies, Rhodri Davies, Jacques Demierre, Ernesto Diaz-Infante, Andrew Drury, Alexander Frangenheim, Tim Hodgkinson, Mazen Kerbaj, Hans Koch, Peter Kowald, Ulrich Krieger, Hannah Marshall, Oren Marshall, Seijiro Murayama, Reuben Radding, Gino Robbair, David Stackenäs, Birgit Ulher, Biliana Voutchkova, Nusch Werchowska, Mathieu Werchowski, Radu Malfatti, Christian Wolfarth, Tom Djll, John Eckhardt, Carl Ludwig Hübsch, Raymond Strid, Martin Küchen, etc. |
Discografia
1982
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Entrevista
Foi já em 2003 que o musicólogo e ativista Rui Eduardo Paes entrevistou o músico, improvisador e compositor Ernesto Rodrigues. Desse encontro preparámos alguns excertos, que aqui apresentamos com a autorização de ambos: Essa relação entre improvisação e liberdade teve uma expressão bastante mais clara e explícita na primeira geração da improvisação na Europa. Julgo que essas conotações políticas eram mais vincadamente assumidas, até porque a relação das ideias de liberdade com o free jazz era bastante estreita. O que verifico hoje em dia é uma progressiva perda da componente espiritual e política, em favor de um “positivismo” cada vez menos solidário e mais “self-centered”. Do meu ponto de vista, essa vertente de cariz espiritual e político não deveria ser omitida dos cânones da psicologia da criação. A dado momento corremos o risco de qualquer manifestação criativa no campo artístico vir a depender única e exclusivamente da inovação no domínio tecnológico, em detrimento das componentes intrínsecas à arte, nomeadamente a sua maturidade estética/conceptual, tornando-a cada vez mais formalista e destituída de conteúdos. Com a perda de relações extrapolativas com outros níveis de consciência, acaba por se perder a essência primordial de qualquer manifestação artística, que passa pela sua relação íntima com o indivíduo, de algum modo provocando um efeito inibidor da sua capacidade de se projectar noutros planos, para os quais a arte e (neste caso) a música potencialmente poderiam remeter. Esta tendência que se tem vindo a verificar não é mais do que uma consequência previsível e inevitável de uma realidade socio-política que cerceia intencionalmente todos os domínios da criatividade que possam subverter a “ordem”. Penso que os interesses pessoais de qualquer artista, em qualquer época - salvo as excepções determinadas por interesses da estética dominante (não nos esqueçamos de que a estética visível é sempre determinada pelo poder) - implicam já o seu modus operandi e a sua originalidade, sempre que associados à sua capacidade volitiva. O meu interesse por movimentos ou “vanguardas” que, de uma forma ou de outra, não se identificaram com o satus quo e representam, de facto, roturas incontornáveis, é o elemento primordial da minha postura relativamente ao mundo e catalizador para a minha criatividade. O Dadaísmo, assim como o Surrealismo, vieram subverter todos os conceitos ligados à arte, na medida em que põe em causa a ideia de belo, de ordem, de perfeição, e defende a liberdade criativa do indivíduo e a espontaneidade numa perspectiva provocatória, escandalizadora e incomodativa. Posso afirmar que se trata de uma recusa deliberada dos processos criativos até então tidos como legitimadores da arte, os quais se encontravam ligados aos princípios da racionalidade. Ora, essa racionalidade é intencionalmente refutada e reformulada. O Futurismo/Construtivismo interessou-me devido à sua contestação dos postulados profundamente alicerçados na própria epistemologia da arte, cuja fascinação pela máquina é comparável à forma como hoje são abordados alguns domínios da mesma - leia-se novas correntes da música electrónica, vídeo-arte, etc. No caso do Fluxus, a facilidade com que figuras como Joseph Beuys, Wolf Vostell ou Robert Filliou (a título de exemplo), escandalizaram e intervieram acutilantemente, pondo em causa “ícones” e referências caros à sociedade burguesa, é para mim verdadeiramente motivadora. A Internacional Situacionista, com a sua argúcia em descodificar criticamente o devir da nossa sociedade, pondo em evidência antagonismos emergentes e alienantes a favor de uma visão mais consciente e humanizada, também não podia deixar de me dizer alguma coisa, assim como alguns movimentos que com ela se relacionaram, como o Letrismo, o Cobra, o Spur ou o Imediatismo. Surgiram na Sétima Arte “ensaístas” com a coragem e a capacidade de extrapolar para o seu meio todas estas problemáticas, ainda que de uma forma muito mais subtil. Para além desta particularidade, o modo incisivo como complementam o cinema com a música colocou-me perante as minhas mais profundas interrogações. Na abordagem syberberguiana, embora seja desenvolvida a partir de arquétipos românticos (Richard Wagner, por exemplo), com os quais já senti maior afinidade, é de ressalvar o talento demonstrado ao sublinhar os conceitos subjacentes a todas as conquistas até à primeira metade do séc. XX, patentes no modo como o ritmo, o espaço, o tempo, o silêncio, etc., são tratados, remetendo para formas mais sublimes. Os seus últimos trabalhos recorrem frequentemente a duas “ferramentas” interactivas bem delineadas: ao monodrama e à imposição quase obrigatória dessa actriz de qualidades excepcionais que dá pelo nome de Edith Clever, com as quais nos tem legado ao longo dos anos obras de uma maturidade estética ímpar. Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, para além de incorporarem todas estas nuances, têm uma relação muito mais íntima com a música do séc. XX, o que está mais próximo da nossa realidade e do meu interesse em concreto, nomeadamente Arnold Schönberg: «Moses und Aron», «Eilentung zu Arnold Schönbergs “Begleitmusik zu einer Lichtspielscene”» e «Von Heute auf Morgen». Por outro lado, o modo como traduzem a tragédia grega na linguagem do nosso quotidiano parece-me extremamente oportuno e conseguido. A imobilidade excessiva da câmara é obviamente intencional, com o objectivo de focalizar o receptor nas características dos personagens e no sentido mais profundo das palavras, não dando azo à dispersão e ao abandono do fio condutor da obra. Os constantes recursos às panorâmicas e aos travellings com respiração exageradamente lenta parecem reflectir, no duplo sentido (físico e psicológico), o modo verdadeiramente esmagador como o silêncio assume a condição de leitmotif. Straub serve-se recorrentemente de décors naturais onde a nudez, a amplitude e a aridez nos sugerem a intemporalidade das questões que nos propõe. Assim, o grande mistério das origens e do elemento primordial surge-nos na sua forma mais agreste e perene num contraponto entre a difícil paisagem, raramente alterável, e os costumes e mentalidades das civilizações no que concerne às suas questões primeiras e às suas motivações mais profundas. Mais do que transcrever obras de referência da nossa matriz cultural, Jean-Marie Straub pretende colocar o espectador contemporâneo no cerne das suas questões metafísicas e ontológicas, que cada vez mais são ignoradas e, em última análise, permanecem imutáveis, resistindo à erosão temporal, iguais a si mesmas desde o princípio dos tempos. Todos estes criadores têm em comum o facto de divergirem da banalidade e da superficialidade vigentes. O mesmo se pode dizer de toda a música pós-serialista. Não posso ignorar a importância de Boulez, Ligeti, Nono ou Stockhausen neste contexto, assim como a de todos os seus pares nas diversas ramificações verificadas ao longo da segunda metade do séc. XX, que nos legaram uma panóplia extremamente diversificada. Assim, deparamo-nos com “escolas” completamente autonomizadas, já não existindo um modelo a seguir como no barroco ou no classicismo - cada compositor tem o seu próprio universo, a sua própria matriz. Daí a enorme disparidade conceptual e formal de um Xenakis quando comparado com um Lachenmann, por exemplo. Chegados ao séc. XXI, surgem-nos compositores cujas preocupações se prendem mais com as capacidades sónicas (físicas e tímbricas) e texturais dos instrumentos em causa, e que sabem privilegiar algo de precioso - o silêncio. O silêncio remete-nos para nós próprios, devendo, pois, ser altamente valorizado e contextualizado. O silêncio anunciado por Cage ainda na primeira metade do séc. XX tem hoje, finalmente, a importância que não lhe chegou a ser conferida. Estão, assim, no meu entender, reunidas as condições necessárias para que esta “categoria” seja assimilada e vivida por todos de forma natural. Neste contexto, são para mim muito importantes compositores como, Salvatore Sciarrino, Rebecca Saunders, Gerhard Stäbler, Olga Neuwirth, Gérard Grisey, Toshio Hosokawa, Isabel Mundry, Vadim Karassikov, Mark Andre, Kaija Saariaho, Iancu Dumitrescu ou Wolfgang Rihm, só para citar alguns, cuja base de sustentação e reflexão me parece de uma solidez e de uma importância incontestáveis. Personalidades como Emmanuel Nunes têm para mim um interesse superlativo. É um enorme privilégio poder disfrutar de toda a sua eloquência, sagacidade, argúcia e mestria. Como ser humano, é de uma simplicidade e de uma generosidade assombrosas. A sua personalidade está intimamente ligada a um forte sentido de modernidade e a sua obra é um testemunho vivo da busca permanente de novas soluções e respostas em matérias como o contraponto e a espacialização - é sobretudo aqui que o seu testemunho tão unanimemente reconhecido tem importância capital. Tendo-se afastado de correntes dominantes na sua época, tais como o pós-serialismo ou o pós-modernismo, determina um universo onde, através de um léxico muito pessoal, elabora uma exploração das características sónicas/tímbricas/texturais/térmicas dos instrumentos, com ou sem transformações electroacústicas em tempo real. Com uma destreza notável no domínio de abstracções tão exactas como as matemáticas, é frequentemente rotulado como demasiado frio, mental ou rígido - epítetos com os quais estou totalmente em desacordo. O jazz e todas as correntes com ele relacionadas têm um carácter iminentemente expressionista. Com todo o respeito, não é essa a via que procuro nem que acho adequada para mim neste momento - parece-me haver formas mais subtis, eficazes e condizentes com o panorama e as carências do mundo actual. No meu caso, a mudança radical dá-se em finais de 1997, quando se extinguiram os projectos a que pertencia: Fromage Digital, IK*Zs(3) e Lautari Consort II. Logo após o termo destes três trios, fiquei com mais espaço e disponibilidade mental para poder definir e traçar as “estratégias” que mais me interessavam e convinham em termos conceptuais, o que aconteceu em 1998. No ano seguinte, com a gravação de «Self Eater and Drinker» com Jorge Valente, pus em prática alguns dos conceitos que hoje me norteiam. É claro que estes atributos são bem mais evidentes em «Sudden Music» ou em «Ficta», mas a aproximação a estas coisas que mexem com a nossa personalidade é tendencialmente lenta. A entrevista completa foi apresentada aqui.
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