ERNESTO RODRIGUES / JORGE VALENTE
Self Eater And Drinker
ERNESTO RODRIGUES / JORGE VALENTE
Self Eater And Drinker CD audEo 0399
Ernesto Rodrigues - violino, violino preparado, processador de sinal Jorge Valente - sintetizador, computador Gravado no estúdio Xangrila em fevereiro de 1999 Técnico de gravação: Pedro Filipe Pós-produção e mistura (sem overdubs) entre março e maio de 1999 Mistura: Ernesto Rodrigues, Jorge Valente e Paulo Jorge Ferreira Produção: Ernesto Rodrigues e Jorge Valente Todas as composições e arranjos: Ernesto Rodrigues e Jorge Valente (SPA / audEo) Desenhos: Kain May Fotografia: Teresa Huertas Design gráfico: Cristina Sampaio e Gonçalo Calheiros Tradução (para inglês): Paulo da Costa Domingos Produção executiva: Luís Freixo Agradecimentos: Cristina Sampaio, Krzysztoff Kain May, Emídio Buchinho, Cristina Águas, José Oliveira, Luís Pedro Fonseca, Paulo Jorge Ferreira, Cristiano Barata, Guilherme Rodrigues, Digital Foto Dedicado a Martin Kippenberger Reservados todos os direitos do produtor fonográfico e do proprietário da obra gravada, sendo proibida a duplicação e a utilização não autorizada desta obra, no todo ou em parte.
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O duo formado por Ernesto Rodrigues e Jorge Valente já se chamou Orquestra Vermelha. As razões que os levaram a escolher esse nome - recorde-se que se designava assim a rede de espionagem implantada pelos serviços secretos soviéticos no III Reich - são compreensíveis, tanto quanto as que os levaram a mudar de ideias. Tem uma clara feição orquestral, a abordagem da electroacústica feita por estes dois improvisadores que prosseguem a tradição cageana, fiéis ao princípio de que todo e qualquer som é passível de aproveitamento na criação de música. Graças à "extensão" do violino operada pela electrónica e às polifonias congeminadas pelo Quatur, um programa interactivo com base Max que é alimentado por um sintetizador Yamaha DX7 II, os planos sonoros multiplicam-se, ganhando uma envolvência que podemos apontar como sinfónica. Por outro lado, a simbólica, e bastante irónica, alusão aos "submarinos" comunistas nas hostes nazis é esclarecedora quanto à maneira de estar de ambos, na medida em que infiltram estéticas e tipologias musicais que pouquíssimo ou nada terão a ver uma com a outra para obter dividendos estranhos a esses domínios. Falo do pós-serialismo e do free jazz, na sequência dos quais eles se situam, cruzando elementos em que dificilmente se adivinharia alguma familiaridade. Desta progressão geométrica resulta aquilo a que normalmente se chama "música estocástica", um nome que define mas não rotula, na impossibilidade (ainda por cima desejada) de o fazer em se tratando de uma música híbrida.
Acontece, porém, que o violinista e o teclista não pensam a música em termos de produto acabado, composição ou obra. Para eles, o acto musical é mais importante do que aquilo que dele resulta. Mesclar os sons que cada um produz numa amálgama indiscernível que nela tem o seu fim, não lhes interessa. Mais cativante é buscar as suas respectivas individualidades e captar-lhes a voz interior, para a partir delas tentar uma mútua estimulação, um diálogo, ou melhor ainda, uma «dinâmica criativa dialéctica», para usar as suas palavras. É esta, aliás, a senda da improvisação, dada a forma como entende o «outro», seja o público ou o(s) músico(s) com quem se actua - afinal, antes de tocar o improvisador ouve. Mais: quando toca, fá-lo na prioritária expectativa de ser ouvido. Silêncios, desafios e reacções não necessariamente previsíveis (quanto menos, melhor!), contrastes e complementaridades, ostinatos, glissandos, estruturas em embrião, pedaços de frases que nunca chegam a formar-se, «self-intonations», catadupas de notas, «drones», ruídos só aparentemente a-musicais (Cage, sempre Cage), microtonalidades, paisagens áudio, falsos solos, inflexões de discurso, rupturas de linearidade assim que esta se torna uma ameaça, simples murmúrios ou convulsões, tudo isto se torna no material de trabalho de uma música a dois, livremente partilhada e dirigida para a «exploração sistemática do interesse», eregendo o tempo real como substrato e causa. Não se pense, porém, que é por optarem pela personalização dos seus nomes na capa deste CD que Ernesto Rodrigues e Jorge Valente resolvem o seu dilema. A música que tocam entre si é bem diferente das que podemos ouvir com o primeiro em contextos como Lautari Consort ou Ik*Zs, e o segundo inserido no Trioto Flêumico ou Fromage Digital. Há algo que acaba por ultrapassar as suas respectivas influências e vontades, algo de que os dois em conjunto e não um e o outro discriminados são simultâneamente sujeito e objecto - esse «algo» é da ordem da indeterminação, do acaso. A improvisação é uma música de acidentes, e estes não dão origem apenas a eventos, mudam também os seres. O que os dois (ou três, ou seis, ou vinte...) músicos são enquanto tocam juntos, são-no consoante as circunstâncias e o modo como se adaptam aos outros, que não somente em conformidade com o que há de mais constante neles. A música improvisada, grito de liberdade individualista (convenhamos: o partidário da improvisação será sempre olhado como alguém que, no mínimo, é bizarro...), é igualmente, num delicioso paradoxo digno de nota, a mais gregária das músicas, ansiando pela colectividade. Não estranha, de resto, que os percursos de Ernesto Rodrigues e Jorge Valente passem pela música popular, quando não mesmo tradicional. Ernesto Rodrigues acompanhou Fausto e integra a formação de Jorge Palma; Valente é um estudioso da música dos países africanos de expressão portuguesa, que chegou a produzir e a editar em disco. Não obstante abraçarem uma prática musical minoritária, interessam-se pelo património que nos é comum e admitem-no nas suas improvisações, mesmo que possam não o fazer em consciência. O estilo violinístico de Ernesto Rodrigues testemunha-o, com a sua dimensão «folk» e uma crueza que é distintiva do violino popular em qualquer parte do Mundo. Quanto a Jorge Valente... Não será verdade que, hoje, o computador é o instrumento popular por excelência? Rui Eduardo Paes jornalista e crítico musical |
A Trompa
Tudo isto é muito estranho. Belissimamente estranho. Confesso que é um universo pouco habitual nos meus roteiros sonoros mas que pouco a pouco, vou descobrindo, sentindo, tentando perceber. É um universo tão escondido, ignorado, mesmo desconhecido e que no entanto, tem tantos lusos alvo de reconhecimento por esses quatro cantos fora. Refiro-me ao mundo do experimentalismo contemporâneo, ao mundo do improviso e refiro-me aos casos de Carlos Zíngaro, Rafael Toral, Carlos Bechegas, Nuno Rebelo ou mesmo Sei Miguel, Jorge Lima Barreto ou Vítor Rua, entre os que aqui hoje refiro, obviamente. (...) Mais uma pequena maravilha sonora a rodar por aqui… (4/5) Rui Dinis Improjazz On retrouve le même désir de diversité et de non-répétition dans «Self Eater and Drinker». Cage n’est pas loin, le violon déréglé s’étire, l’archet s’abat, la caisse de résonance du violon devient percussion à part entière. Il y a juste un petit peu plus d’austérité par rapport à «Multiples». Il y a le débit irraisonné des computers de Jorge Valente, les renversements arides d’Ernesto Rodrigues. Il y a en tout cas une personnalité émergeante singulière dont on attend les prochains enregistrements avec impatience. Merci boss! Luc Bouquet Jazz Magazine En duo avec Jorge Valente ("Self Eater And Drinker") au synthétiseur et à l'ordinateur, Ernesto Rodrigues utilise uniquement le violon (préparé ou non, dans une démarche qui doit beaucoup à John Cage). L'interaction des sonorités acoustiques et électriques brosse un tableau intrigant au sein duquel l'élément de surprise vient continuellement brouiller les séquences répétitives. Thierry Quénum Jornal de Letras Terceira edição da etiqueta do Porto, este é o CD que coloca finalmente em primeiro plano dois dos músicos nacionais que há mais tempo circulam nos meios da improvisação - Jorge Valente, por exemplo, pertenceu a uma das formações dos Plexus de Carlos Zíngaro, nos idos anos 70. José Ernesto Rodrigues participou recentemente em metade de «Projects», de Carlos Bechegas, lançado pela britânica Leo Lab, mas tem aqui a «visibilidade» que lhe faltava. Musicalmente, reconhecem-se influências do pós-serialismo e das práticas mais convencionais daquilo que ficou conhecido como «live-electronics». Introspectiva, minimalista no sentido da economia dos materiais sonoros e das técnicas utilizadas (o violinista procura utilizar apenas certos motivos em cada tema, restringindo o seu âmbito de acção), esta suite em oito partes dedicada a Martin Kippenberger ouve-se com bastante agrado mas nunca surpreende nem tem grandes rasgos. Rui Eduardo Paes Just Outside His duo from 1999 with Jorge Valente (synthesizer and computer) finds the pair (Rodrigues on violin, prepared violin, signal processor) in very scratchy, skittery mode on one piece, loopy and bloopy on another, spacy here, harsh there, less, as I hear it, expansive in exploration of areas than unfocussed. Within this, there's still a good measure of call and response, in solid efi fashion, less of a concern with the space. Now, to my ears, this makes things not so interesting, but especially at the time of its release, I could imagine it being door-opening to someone coming out of the (say) Wachsmann/Turner environment. Brian Olewnick Margen Dos artistas que se mueven en mundos tan diversos no podían menos que aportar un cierto aire renovador ante el saturado y empalagoso mundo de la tecnología digital. Rogelio Pereira Monsieur Délire This record predates the inception of Ernesto Rodrigues’ Creative Sources label. Back in 1999, Ernesto wasn’t even playing viola, but violin. Yet, his original take on free improvisation was already in full development. This studio session in duo with keyboardist/computer musician Jorge Valente features a single long-form improvisation split into eight sections. The violinist uses short and targeted noise-based sounds, while Valente adds electroacoustic treatments and synthesized sounds. More busy than the ultra-delicate improvisations Rodrigues will take part to later on, this record is nevertheless successful. And it offers an interesting window on a pivotal period in the evolution of a unique improviser. François Couture Público Estruturado como uma "suite em oito partes", "Self Eater" vive, como Rui Eduardo Paes cita nas excelentes notas de capa, da "dinâmica criativa dialéctica" e da "exploração sistemática do instante" entre o violino, quase sempre traficado electronicamente, de Ernesto Rodrigues, nos últimos anos acompanhante regular de Jorge Palma, e a parafernália electrónica de Jorge Valente, conotado com projectos de natureza mais esotérica, como os Trioto Flêumico e Fromage Digital. O problema com que "Self Eater" se debate é, por natureza, irresolúvel. É que, se a "exploração sistemática do instante" pode representar a expressão mais verdadeira do acto de criação musical, a mesma deixa, contudo, de fazer sentido quando "enclausurada" no suporte discográfico. O que se escuta num disco de música improvisada é outra coisa diferente da sua génese. Que sentido faz falar do "instante", quando o auditor pode avançar ou recuar, seleccionar, repetir ou truncar, sempre que quiser, a música contida no CD? Sejamos claros, a improvisação é ritual para ser escutado e vivido ao vivo. Por isso, e apesar de toda a teorização passível de fazer em torno dos processos que levaram à feitura de "Self Eater and Drinker", Ernesto Rodrigues e Jorge Valente tiveram o cuidado de referenciar todos os temas como "composições e arranjos". "Self Eater and Drinker" sobrevive assim mais pelo lado da tal "dinâmica criativa dialéctica" entre os dois músicos. Mas essa é já uma questão de ordem metafísica e matemática que não se compadece com uma audição descontextualizada. Daí Rui Eduardo Paes apontar que para os dois executantes "o acto musical é mais importante do que aquilo que dele resulta", o que aproxima "Self Eater and Drinker" menos das teorias integracionistas de John Cage e mais das tomadas de posição de Derek Bailey sobre o primado do processo sobre o produto final. Mas o problema mantém-se e o que dele resulta em "Self Eater" é uma massa, por vezes impenetrável, por vezes atraente, de estímulos e texturas electrónicos supersaturados em que os programas "composicionais" do computador de Jorge Valente fazem valer os seus direitos sobre a respiração, mais visceral (mas não menos abstracta) de Ernesto Rodrigues. Fernando Magalhães Touching Extremes I thought about fragments of life, caught glimpses of extra sensorial activities, intercepted dialogues between strange alien creatures...The duo of Ernesto Rodrigues (processed and prepared violin) and Jorge Valente (computer, synth) leaves a lot of space, both literally - by respecting the principle of silence and sound being equally fundamental - and to the imagination, as one is forced to use his own mind to figure out what's going to happen, right after the very first moments of their interconnection. The alternance between strange waves of hallucinating auras and the spiky hits of the strings mixed with computer-processed electronics is the strongest point of this record: eight movements flowing without any fatigue, showing everybody that no definition is necessary when intelligence is involved. Massimo Ricci |